O conflito é muito mais profundo do que pensamos. Os slogans iniciais não se opunham à República Árabe Síria, nem ao presidente Bashar al-Assad, mas à própria essência da civilização síria. Tratava-se de acabar com uma sociedade tolerante com muitas religiões, inigualável no mundo, e impor um modo de vida que esteja de acordo com os princípios da Irmandade Muçulmana.
A Síria é um espaço no qual as pessoas podem praticar livremente sua religião e ajudar os outros a praticar a sua. Assim, a Mesquita dos Omíadas de Damasco é um santuário em volta da relíquia da cabeça de João Baptista. Durante séculos, todos os dias, sem excepção, judeus [3], cristãos e muçulmanos rezaram juntos lá.
A Irmandade Muçulmana não é um grupo religioso, mas uma fraternidade política. Estão organizados no modelo das lojas maçónicas europeias, que vários dos seus fundadores frequentavam. Seus membros são activos em vários partidos políticos públicos e grupos jihadistas. A totalidade, sem excepção, dos líderes jihadistas de Osama Bin Laden a Abu Bakr al-Baghdadi, são membros ou ex-membros da Irmandade.

A segunda parte do livro de Thierry Meyssan, «Sob os nossos olhos», constitui, até à data, o único estudo sobre a história internacional da Irmandade Muçulmana.
A ideologia da Irmandade Muçulmana divide dois tipos de acção: aquelas que, segundo ela, são autorizados por Deus e aquelas que são proibidos por Ele [4]. Consecutivamente, divide o mundo em dois: os servos e os inimigos de Deus. Finalmente, magnifica aqueles que seguem a concepção dos actos autorizados por Deus e encorajam o massacre dos outros.
Essa ideologia é professada por pregadores sauditas (embora eles condenem agora a Irmandade e prefiram a família real), bem como pelos governos turco e catariano. Essa ideologia não está apenas em acção na guerra contra a Síria, mas também em todos os ataques jihadistas cometidos em todo o mundo.
Supondo que os Estados Unidos estejam prontos para a paz na Síria, tal só será possível se a Assembleia Geral das Nações Unidas, ou, na falta desta, o Conselho de Segurança, condenem explicitamente a ideologia da Irmandade Muçulmana. Como resultado, a paz na Síria simplificaria enormemente a situação na Líbia, no Iraque e no Afeganistão, bem como contribuiria para o enfraquecimento do terrorismo internacional.
Portanto, é perigoso falar de uma “amnistia geral” quando é necessário expor e julgar os crimes imputáveis a essa ideologia. Assim como no final da Segunda Guerra Mundial os ideólogos e apologistas do nazismo foram julgados, assim devem ser julgados hoje os que difundiram essa ideologia. Mas será necessário julgá-los não como fizeram em Nuremberga, mas no mais estrito respeito pelo Estado de direito e sem recorrer – como em Nuremberga – à aplicação de textos retroactivos. Entenda-se que o importante não é condenar indivíduos, mas sim compreender uma ideologia para a eliminar.
Em 1945, a URSS / Rússia foi reconstruída em torno de um único facto comum: a luta contra a ideologia racial do nazismo – isto é, a afirmação de que todos os homens são iguais e que todos os povos são dignos de respeito. Identicamente, a Síria só pode se reconstruída em torno da luta contra a ideologia da Irmandade Muçulmana – a afirmação de que todos os homens são iguais e que todas as religiões são dignas de respeito. Tendo a Irmandade Muçulmana beneficiado e ainda beneficia do apoio do Reino Unido [5], não será possível julgar os seus líderes. Independentemente disso, o que importa é expor publicamente essas ideias e os crimes conduzidos directamente por elas.
Conclusão
Uma guerra termina sempre com vencedores e perdedores. Ela destruiu vidas não só na Síria, mas também na França e Bélgica, China e Rússia, e em muitos outros países. A paz na Síria deve, portanto, ser considerada não apenas em termos de realidades locais, mas também de crimes cometidos por jihadistas noutros Estados.
Sabendo-que os 124 Estados autoproclamados “Amigos da Síria” tenham perdido militarmente, agiram por interpostos mercenários e muitas vezes não experimentaram uma perda militar nos seus territórios, eles não estão prontos para aceitar a derrota e procuram unicamente esconder as suas responsabilidades nos crimes cometidos.
Só haverá paz na Síria se a ideologia da Irmandade Muçulmana for condenada. Esta guerra continuará outros países se tal não for feito.
Thierry Meyssan
[1] The Pentagon’s New Map, Thomas P. M. Barnett, Putnam Publishing Group, 2004. “O projecto militar dos Estados Unidos pelo mundo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Agosto de 2017.
[2] “James Mattis Remarks at the United States Institute for Peace”, by James Mattis, Voltaire Network, 30 October 2018. “Michael R. Pompeo : Ending the Conflict in Yemen”, by Mike Pompeo, Voltaire Network, 31 October 2018. “Washington quer acabar com a guerra no Iêmene”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Novembro de 2018.
[3] Depois de 1967, a maior parte dos judeus sírios saíram do país para Israel. No entanto inúmeros visitantes estrangeiros judeus continuam a vir orar na Grande Mesquita.
[4] Ma’alim fi tarîq, Sayyid Qutb, 1964. Version française : Jalons sur la route de l’islam, Sayyid Qutb, Ar-Rissala.
[5] De leitura obrigatória : «Les Printemps arabes vécus par les Frères musulmans», o único estudo actualmente disponível sobre a história internacional da Irmandade. Em Sous nos yeux («Sob os nossos olhos»), por Thierry Meyssan, Demi-Lune 2017.