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Livro «Sous nos yeux » (2/25) “Sob os nossos olhos” (2/25)
Tradução do artigo Les Frères musulmans en tant qu’assassins
(Os Irmãos Muçulmanos como assassinos – 2ª parte)
De Thierry Meyssan
Continuamos a publicação do livro de Thierry Meyssan, « Sous nos yeux ». Neste episódio, ele descreve a criação de uma sociedade secreta egípcia, a Irmandade Muçulmana e a sua reactivação após a Segunda Guerra Mundial pelos serviços secretos britânico. Por fim o uso desse grupo pelo MI6 para realizar assassinatos políticos nesta ex-colónia da coroa.
Rede Voltaire / Damasco (Síria) 21 de Junho de 2019
2— A Confraria reformada pelos Anglo-Saxónicos e a paz separada com Israel
A capacidade da Irmandade de mobilizar pessoas e de as transformar em assassinos só pode intrigar as Grandes Potências.
Dois anos e meio após a sua dissolução, uma nova organização é formada pelos anglo-saxónicos reutilizando o nome de «Irmãos muçulmanos».
Aproveitando o encarceramento dos governantes históricos, o ex-juiz Hassan Al-Hodeibi é eleito Guia Geral. Ao contrário da ideia geralmente aceita, não há continuidade histórica entre a antiga e a nova irmandade. Acontece que uma unidade da antiga sociedade secreta, o «Aparelho Secreto», tinha sido encarregue por Hassan el-Banna (militante islâmico egípcio- Ndt) de realizar ataques dos quais negava a paternidade.
Essa unidade na organização era tão secreta que não foi afectada pela dissolução da Irmandade e agora está à disposição do seu sucessor. O Guia decide rejeitá-la e declara que deseja atingir os seus objectivos apenas de maneira pacífica. É difícil estabelecer exactamente o que aconteceu naquela época entre os anglo-saxónicos que queriam recriar a velha sociedade e o Guia que queria recuperar a sua audiência nas grandes massas.
De qualquer forma, o “Aparelho Secreto” continuou e a autoridade do Guia desapareceu em favor da dos outros líderes da Irmandade, iniciando-se uma verdadeira guerra interna.
A CIA apresentou à sua liderança o maçon Sayyid Qutb [1], o teórico da jihad, que o Guia condenou antes de concluir um acordo com o MI6.
É impossível precisar as relações de subordinação interna de uns e outros, porque cada ramo estrangeiro tem autonomia própria e porque as unidades secretas da organização não dependem mais do Guia Geral, nem do Guia Local, mas por vezes, directamente da CIA e MI6.
No período seguinte à Segunda Guerra Mundial, os britânicos tentaram organizar o mundo de maneira a mantê-lo fora do alcance dos soviéticos.
Em Setembro de 1946, Winston Churchill lançou em Zurique a ideia dos Estados Unidos da Europa. Sob o mesmo princípio, lança também a Liga Árabe. Nos dois casos, trata-se de unir uma região sem a Rússia.
Desde o início da Guerra Fria, os Estados Unidos da América criaram associações para apoiar esse movimento em seu benefício, o Comité Americano da Europa Unida e os Amigos Americanos do Médio Oriente [2].
No mundo árabe, a CIA organiza dois golpes de Estado, o primeiro a favor do general Hosni Zaim em Damasco (Março de 1949), depois com os Oficiais Livres no Cairo (Julho de 1952). Trata-se de apoiar nacionalistas que se supõe serem hostis aos comunistas.
Foi nesse estado de espírito que Washington levou o general Otto Skorzeny ao Egipto e o general nazi Fazlollah Zahedi ao Irão, acompanhados com centenas de ex-líderes da Gestapo, para liderar a luta anticomunista.
Infelizmente, Skorzeny modelou a polícia egípcia numa tradição de violência. Em 1963, ele escolherá a CIA e Mossad contra Nasser. Zahedi criará o SAVAK, a polícia política mais cruel da época no Irão.
Se Hassan el-Banna (militante islâmico egípcio – Ndt) estabeleceu o objectivo – tomar o poder manipulando a religião – Sayyid Qutb definiu os meios: a jihad. Uma vez que os adeptos admitiram a superioridade do Alcorão, pode-se confiar nele para os organizar num exército e enviá-los para a batalha.
Sayyid Qutb desenvolve uma teoria maniqueísta que distingue o que é islâmico do que é «sombrio».
Para a CIA e MI6, essa lavagem cerebral permitia utilizar os seguidores para controlar os governos nacionalistas árabes e depois desestabilizar as regiões muçulmanas da União Soviética.
A Irmandade torna-se num reservatório inesgotável de terroristas sob o lema: «Alá é nosso objectivo. O Profeta é nosso líder. O Alcorão é a nossa lei. A jihad é o nosso caminho. Martírio, o nosso desejo».
O pensamento de Qutb ( maçon Sayyid Qutb, o teórico da jihad -Ndt) é racional mas não razoável. Ele implementa uma retórica invariável Alá / Profeta / Alcorão / Jihad / Martírio, que não deixa espaço a debates. Ele postula a superioridade da sua lógica acima da razão humana.
A CIA organiza um simpósio na Universidade de Princeton sobre «A situação dos muçulmanos na União Soviética». Esta é a oportunidade de receber nos Estados Unidos uma delegação da Irmandade Muçulmana liderada por um dos líderes da sua ala armada, Saïd Ramadan.
O oficial da CIA encarregado de monitorizar refere no seu relatório, que Ramadan não é um extremista religioso, mas um fascista; uma maneira de enfatizar o carácter exclusivamente político da Irmandade Muçulmana. O simpósio termina com a recepção na Casa Branca pelo presidente Eisenhower em 23 de Setembro de 1953. A aliança entre Washington e o jihadismo é concluída.
A CIA, que recriou a Irmandade contra os comunistas, usou-a primeiro para ajudar os nacionalistas. Naquela época, a agência era representada no Médio Oriente por anti-sionistas da classe média. Eles foram rapidamente demitidos e substituídos por altos funcionários de origem anglo-saxónica e puritana, formados nas grandes universidades e favoráveis a Israel. Washington entrou em conflito com os nacionalistas e a CIA voltou a Irmandade contra eles.
Saïd Ramadan havia comandado alguns combatentes da Irmandade durante a breve guerra contra Israel em 1948, depois ajudou Sayyid Abul Ala Maududi a montar no Paquistão a organização paramilitar «Jamaat-i-Islami».
Trata-se então, de fabricar uma identidade islâmica para os índios muçulmanos, para que eles constituíssem um novo Estado, o Paquistão.
O Jamaat-i-Islami escreverá a constituição paquistanesa. Ramadan casa-se com a filha de Hassan Al-Banna e torna-se líder da ala armada da nova «Irmandade Muçulmana».
Entretanto, a Irmandade participou no golpe de Estado dos Oficiais Livres do General Mohammed Naguib no Egipto – Sayyid Qutb era seu oficial de ligação – eles são encarregues de eliminar um dos seus líderes, Gamal Abdel Nasser, que entrou em conflito com Naguib.
Não apenas falharam em 26 de Outubro de 1954 como Nasser assumiu o poder, reprimiu a Irmandade e colocou Naguib em prisão domiciliária. Sayyid Qutb será enforcado alguns anos depois.
Interditados no Egipto, os Irmãos retornam aos Estados Wahhabi (Arábia Saudita, Catar e emirado de Charjah) e à Europa (Alemanha, França e Reino Unido, além da Suíça neutra).
Todas as vezes, são recebidos como agentes ocidentais que lutam contra a aliança nascente entre nacionalistas árabes e a União Soviética.
Saïd Ramadan recebeu um passaporte diplomático jordano e mudou-se para Genebra em 1958, onde liderou a desestabilização do Cáucaso e Ásia Central (Paquistão / Afeganistão e a «Vale Ferghana» soviética). Ele assume o controlo da Comissão para a construção de uma mesquita em Munique, o que lhe permite supervisionar quase todos os muçulmanos da Europa Ocidental.
Com a ajuda do Comité Americano para a Libertação dos Povos da Rússia (AmComLib), ou seja da CIA, possui a Radio Liberty / Radio Free Europe, estação financiada directamente pelo Congresso norte americano para espalhar o pensamento da Irmandade [3].
Após a crise do Canal de Suez e da dramática reviravolta de Nasser no lado soviético, Washington decidiu apoiar a Irmandade Muçulmana sem limites contra os nacionalistas árabes.
Miles Copeland, executivo sénior da CIA, é incumbido – sem sucesso – de seleccionar na Irmandade uma personalidade que possa desempenhar o papel no mundo árabe equivalente ao do pastor «Billy Graham», nos Estados Unidos. Será necessário esperar até aos anos 80 para encontrar um pregador dessa escala, o egípcio «Youssef Al-Qaradâwî».
Em 1961, a Irmandade estabeleceu uma conexão com outra sociedade secreta, a Ordem dos Naqchbandis. Trata-se de um tipo de Maçonaria Muçulmana que mistura a iniciação Sufi e política. Um de seus teóricos indianos, Abu Al-Hasan Ali al-Nadwi, publicou um artigo na revista dos Irmãos.
A Ordem dos Naqchbandis é antiga e está presente em muitos países. No Iraque, o grão-mestre não é outro senão o futuro vice-presidente Ezzat Ibrahim Al-Douri. Ele apoiará a tentativa de golpe da Irmandade na Síria em 1982, depois a «campanha de retorno à Fé» organizada pelo presidente Saddam Hussein para restaurar a identidade do seu país após o estabelecimento da área de exclusão aérea pelos Ocidentais.
Na Turquia, a Ordem terá um papel mais complexo. Incluirá como líderes Fethullah Güllen (fundador do Hizmet), Presidente Turgut Özal (1989-93) o Primeiro-ministro Necmettin Erbakan (1996-97), fundador do Partido da Justiça (1961) e Milli Görüs (1969).
No Afeganistão, o ex-presidente Sibghatullah Mojaddedi (1992) foi o grão-mestre.
Na Rússia, com a ajuda do Império Otomano, a ordem dos Naqchbandism, no século XIX revoltou a Crimeia, o Uzbequistão, a Chechénia e o Daguestão contra o czar. Até à queda da URSS, não haverá notícias deste ramo; da mesma forma no chinês Xinjiang. A proximidade dos Irmãos e dos naqchbandis é raramente estudada, tendo em vista a oposição de princípios dos islamistas ao misticismo e às ordens sufistas em geral.
Em 1962, a CIA incentivou a Arábia Saudita a criar a Liga Islâmica Mundial e a financiar a Irmandade e a Ordem contra nacionalistas e comunistas. [4]
Essa estrutura é financiada pela primeira vez pela Aramco (Companhia Árabe-Americana de Petróleo). Entre os cerca de 20 membros fundadores, existem três teóricos islâmicos que já mencionamos: o Saïd Ramadan egípcio, o paquistanês Sayyid Abul Ala Maududi e o indiano Abu Al-Hasan Ali Al-Nadwi.
De facto a Arábia Saudita, que de repente dispõe de uma enorme liquidez graças ao comércio de petróleo, torna-se o padrinho dos Irmãos no mundo. Em casa, a monarquia confia-lhes o sistema de ensino escolar e universitário, num país onde quase ninguém sabe ler e escrever. Os Irmãos precisam de se adaptar aos seus anfitriões.
A lealdade ao rei impede-os de prestar lealdade ao Guia Geral. De qualquer forma, organizam-se em torno de Mohamed Qutb, irmão de Sayyid, em duas tendências: os Irmãos Sauditas, de um lado, e os «Sururistas», do outro. Os últimos, que são sauditas, tentam uma síntese entre a ideologia política da Irmandade e a teologia «wahhabi». Esta seita, da qual a família real é membro, carrega uma interpretação do Islão extraído do pensamento beduíno, «iconoclasta» e anti-histórico. Até Riade ter petrodólares, ela anatematizou as escolas muçulmanas tradicionais, que por sua vez a consideravam herética.
Na realidade, a política dos Irmãos e a religião wahhabi não têm nada em comum, mas são compatíveis. Excepto no pacto que liga a família dos Saud aos pregadores wahhabi não pode existir com a Irmandade: a ideia de uma monarquia de direito divino esbarra no apetite pelo poder dos Irmãos. Concorda-se, portanto, que os Saud apoiarão os Irmãos em todo o mundo, com a condição deles se absterem de entrar na política da Arábia Saudita.
O apoio dos wahhabis sauditas aos Irmãos provocou uma rivalidade adicional entre a Arábia Saudita e os outros dois Estados wahhabis, o Catar e o Emirado de Charjah.
De 1962 a 1970, a Irmandade Muçulmana participou na guerra civil no Iémen do Norte e tentou restaurar a monarquia ao lado da Arábia Saudita e Reino Unido, contra os nacionalistas árabes, Egipto e URSS; um conflito que prefigura o que se seguirá durante meio século.
Em 1970, Gamal Abdel Nasser (presidente do Egipto desde 1954 até sua morte – Ndt) conseguiu estabelecer um acordo entre as facções palestinianas e o rei Hussein da Jordânia, que encerrou o “Setembro negro”.
Na noite da cúpula da Liga Árabe que ratifica o acordo, ele morre, oficialmente de ataque cardíaco, mas é mais provavel que tenha sido assassinado. Nasser tinha três vice-presidentes, um da esquerda – extremamente popular – um centrista – bem conhecido – e um conservador escolhido a pedido dos Estados Unidos e da Arábia Saudita: Anouar el-Sadate.
Sob pressão, o vice-presidente da esquerda declara-se indigno para a função. O vice-presidente centrista prefere abandonar a política. Sadate é indicado como candidato dos nasseristas. Esta é a tragédia de muitos países: um presidente escolhe um vice-presidente entre os seus rivais de maneira a ampliar sua base eleitoral, mas este substitui-o quando morre e aniquila a sua herança.
Sadate, que serviu o Reich durante a Segunda Guerra Mundial e tinha uma grande admiração pelo Führer, é um soldado ultraconservador que serviu de alter-ego a Sayyid Qutb (activista político e militante radical muçulmano ligado à Irmandade Muçulmana- Ndt) como agente de ligação entre a Irmandade e os Oficiais Livres.
Após ascender ao poder, Sadate libertou os Irmãos presos por Nasser. O «Presidente Crente» é o aliado da Irmandade quanto à islamização da sociedade (a «revolução da rectificação»), mas seu rival quando obtém lucro político.
Essa relação ambígua é ilustrada pela criação de três grupos armados, que não são divisões da Irmandade, mas unidades externas que lhe obedecem: o Partido de Libertação Islâmica, a «Jihade Islâmica» (do Xeque Omar Abdul Rahman) e Excomunhão e Imigração (o «Takfir»). Todos declaram aplicar as instruções de Sayyid Qutb. Armada pelos serviços secretos, a Jihade Islâmica lança ataques contra «cristãos coptas».
Longe de apaziguar a situação, o «Presidente Crente» acusa os coptas de sedição e aprisiona o seu papa e oito dos seus bispos. No final, Sadate intervém na condução da Irmandade e defende a Jihad Islâmica contra o Guia Geral, que manda prender [5].
Sob instruções do secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, Sadate convenceu a Síria a juntar-se ao Egipto para atacar Israel e restaurar os direitos palestinianos. A 6 de Outubro de 1973, os dois exércitos encarceram Israel durante a festa de Yom Kipur. O exército egípcio atravessa o canal de Suez enquanto o sírio atacava a partir das colinas de Golã.
No entanto, Sadate só usa parcialmente a sua cobertura antiaérea e interrompe o seu exército a 15 quilómetros a leste do canal, enquanto os israelitas atacam os sírios que estão presos e gritam contra a conspiração.
Só quando os reservistas israelitas se mobilizaram e o exército sírio foi cercado pelas tropas de Ariel Sharon, que Sadate ordenou que retomasse o seu avanço e depois impedi-lo de negociar um cessar-fogo. Observando a traição egípcia, os soviéticos que já haviam perdido um aliado com a morte de Nasser, ameaçam os Estados Unidos e exigem uma interrupção imediata dos combates.
Quatro anos depois – continuando o plano da CIA – o presidente Sadate viaja a Jerusalém e decide assinar uma paz separada com Israel às custas dos palestinianos. Agora a aliança entre a Irmandade e Israel está selada. Todos os povos árabes condenam essa traição e o Egipto é excluído da Liga Árabe, cuja sede é transferida para Tunes.
Em 1982, Washington decide virar a página. A Jihad Islâmica é encarregue de liquidar Sadate, agora sem interesse. Ele foi assassinado num desfile militar, quando o Parlamento se preparava para o proclamar «Sexto Califa». Na tribuna oficial, 7 pessoas são mortas e 28 feridas, mas o vice-presidente do presidente, o general Mubarak que estava sentado ao seu lado, escapa. Convenientemente, ele era a única pessoa na tribuna oficial a usar um colete à prova de balas. Ele sucede ao «presidente crente» e a Liga Árabe pode ser agora repatriada para o Cairo.
[1] “Sayyid Qutb era franco-maçom”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 1 de Junho de 2018.
[2] America’s Great Game: The CIA’s Secret Arabists and the Shaping of the Modern Middle East, Hugh Wilford, Basic Books (2013).
[3] A Mosque in Munich: Nazis, the CIA, and the Rise of the Muslim Brotherhood in the West, Ian Johnson, Houghton Mifflin Harcourt (2010).
[4] Dr. Saoud et Mr. Djihad. La diplomatie religieuse de l’Arabie saoudite, Pierre Conesa, préface d’Hubert Védrine, Robert Laffont (2016). English version: The Saudi Terror Machine: The Truth About Radical Islam and Saudi Arabia Revealed, Skyhorse (2018).
[5] Histoire secrète des Frères musulmans, Chérif Amir, préface d’Alain Chouet, Ellipses (2015).